Por Carlos Correia Santos
Hoje, ela mora bem ali, no início da Pedro Miranda. Ontem, era o puro esplendor da capacidade feminina sem endereço certo. Hoje, corta-se caminho por Eneida. Corre-se atrás do ônibus que está vindo e não pode ser perdido. Pisa-se na grama de Eneida sem o mínimo respeito. À noite, casais namoram em Eneida. Mas há muito tempo que Belém não namora com Eneida. Hoje apenas uma praça, batizada com seu nome, em Belém do Pará, cidade em que nasceu. Ontem – e sempre – uma das maiores escritoras, uma das maiores personalidades que este Estado já viu surgir.
Eneida Vilas Boas Costa de Moraes, como boa e saborosa manga, brotou do nosso chão. Nasceu num palacete situado à rua Benjamim Constant e ali se criou, estruturou-se. Filha de Guilherme Costa e Júlia Vilas Boas Costa. Família de posses. O pai era comandante de navio e, assim, desbravava os rios do Estado. Rios que, de um jeito ou de outro, acabariam tomando conta das veias de Eneida, correndo por elas mais do que seu próprio sangue. O amor de Eneida pelo Pará foi tanto que mais verdes do que essas terras só mesmo os olhos da autora, eternos apaixonados por Belém. E justamente este verde estaria no título do primeiro livro de Eneida. Em 1930, ela publicou Terra Verde, um livro de poemas com temática amazônica.
Contista, cronista, memorialista, Eneida foi daquelas criaturas que talvez já tenham nascido com a ânsia de se renovar eternamente e nunca se conformar com que é imposto. Ainda muito jovem, foi morar no Rio de Janeiro, na época, a capital federal. Tratava-se da era Vargas, do Estado Novo. Sempre à frente de seu tempo e dona de uma incansável sede por revoluções íntimas e sociais, Eneida filiou-se ao Partido Comunista. Assim, posicionou-se abertamente contra a ditadura Vargas e se tornou uma das principais perseguidas políticas do período. Foi presa várias vezes.
Na prisão, no cárcere da Casa de Detenção, Pavilhão dos Primários, Eneida dividiu cela com criaturas que dividiriam a História em antes e depois deles: Graciliano Ramos, Olga Benário, dentre outros. Toda esta vivência árdua e incomum serviria de matéria prima para as obras de Eneida. Obras de caráter autobiográfico, com um estilo único: mistura de leveza e precisão, lirismo e simplicidade. Obras que, antes de tudo, não são uma leitura, e sim uma conversa com a autora. Textos sem fronteiras.
E Eneida rompeu muitas fronteiras, conheceu o mundo. Após a Segunda Guerra, no ano de 1949, mudou-se para Paris e lá fixou residência. Mas foi além. Na década de 50, fez uma longa viagem pela Rússia, por alguns países socialistas e pela China. Desta jornada resultaria o livro Caminhos da Terra. Outro dentro de um universo de publicações que se tornaria ainda mais fértil nos anos 60
Mesmo correndo o mundo, Eneida nunca se deixou ficar distante da realidade de seu país. Apaixonada por cultura do povo, dedicou-se a um profundo estudo sobre o folclore brasileiro. No Rio de Janeiro, foi grande entusiasta do Carnaval (vide box). Foliona de grande marca, criou na capital carioca o Baile do Pierrô.
O belo fruto da Arte que foi Eneida despediu-se das árvores de sua Terra Verde num mês de abril. Eneida morreu em 27 de abril de 1971. Mas a bela mulher, a guerreira, a escritora não partiu. Todo seu legado ficou. Eneida foi sepultada em Belém, no Cemitério de Santa Isabel. Atendendo a um pedido seu, sepultada no lado esquerdo do cemitério como uma boa Comunista.
O Samba também amou Eneida
Ela foi homenageada pelo samba mais de uma vez. No Rio, em 72 (um ano após a morte de Eneida), a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro transformou a escritora e seu amor pelo Pará no enredo de seu desfile. Em 1973, foi a vez do “Quem São Eles”, em Belém, render honras a autora com o samba enredo “Eneida Sempre Amor”, composto por João de Jesus Paes Loureiro e Simão Jatene.
Aqui, um trecho do samba do Salgueiro, de 1972:
“O povo sambando,
Cantando a melodia
Salgueiro traz o tema
Eneida, amor e fantasia.
A mulher que veio do Norte
Para o Rio de Janeiro
Com idéia genial,
Em busca da glória
Na literatura nacional
Expoente jornalista
Suas crônicas são imortais
Foi amiga dos sambistas
Fatos que não esquecemos jamais”
Trecho de “Capítulo dos Relógios”, em “Aruanda” (Eneida de Moraes)
“(...)Uma noite, numa de minhas prisões (quem já esqueceu os trágicos dias do fascismo brasileiro?) fui levada da Casa de Detenção para a Polícia Civil. Ia ser novamente interrogada.
Quando cheguei ao sombrio prédio da Rua da Relação, puseram-me num cubículo onde já havia alguém. Era noite; estava escuro demais naquele pedacinho frio. Não consegui ver a pessoa presente. Perguntei:
- Quem é você?
Ouvi um soluço e uma voz feminina começou a contar:
- Não sou política, nunca me meti nisso, mas me prenderam. E você quem é? Não entendo de nada. Só se foi porque andei dizendo na repartição que precisamos ter liberdade no Brasil. Tenho também uns parentes que foram presos, mas eu sou eu (e soluçava)... Que horas são?
Disse-lhe a hora, contei quem era e de onde vinha, esperei que meus olhos se habituassem a escuridão. Conversamos. Era um bela mulher morena que chorava, chorava muito. Ia perder o emprego com certeza, ia sofrer, iam bater-lhe (...)”
As obras de Eneida
Terra Verde – poemas, 1930
Paris e Outros Sonhos – crônicas, 1951
Sujinho de Terra – infantil, 1953
Cão da Madrugada – crônicas, 1954
Aruanda – crônicas, 1957
História do Carnaval Carioca – história, 1958
Caminhos da Terra – memórias, 1959
Banho de Cheiro – crônicas, 1963
Boa Noite, Professor – contos, 1965
Salgueiro 1973 e não 1972.
ResponderExcluirquero alguma obra dela que tiver em pdf me envia
ResponderExcluir